Entrevista a Rodrigo Sobral Cunha

 “Sintra é lugar primordial e é a última terra, onde a Serpente morde a Cauda” 


 

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Rodrigo Sobral Cunha nasceu em Lisboa, em 1967. É professor no IADE e mora em Sintra. Licenciado e Mestre em Filosofia (via científica) pela Universidade Católica Portuguesa, Doutorado em Filosofia pela Universidade de Évora e Pós-Doutorado em «Ritmanálise» pela Universidade de Lisboa. Livros recentes: «A Saudade dos Heróis» (2012) e «O Essencial sobre Ritmanálise» (2010). Entre 2014 e 2015 organizou com o IADE e a Câmara Municipal de Sintra o Colóquio Nacional sobre Raul Lino em Sintra, a assinalar os 40 anos do seu desaparecimento e os 100 anos da inauguração da Casa do Cipreste. Solicitou que a entrevista respeitasse a anterior ortografia.

 

Rodrigo Sobral Cunha, acha que há um sentido trágico em Sintra ou exacerbações românticas derivadas dos mitos que a ela se associam?Sintra é paisagem ou é jardim?

No sentido religioso antigo da palavra grega «tragédia», Sintra é teatro maravilhoso e terrível das forças da vida e da morte. Se estas forças forem «personalizadas», então aparece a mitologia. Sintra é uma fonte mitológica que rivaliza com Proteu no dom das metamorfoses: por exemplo, a propósito das neblinas sintrenses que sobem o Cabo da Roca e vestem a serra, segundo um dito popular antigo «é a Lua que fia na Roca» (repare como sempre se soube que a Lua estava ligada aos movimentos aquáticos). Se nos quisermos exprimir de modo mítico-poético e até trágico, embora também romântico, podemos dizer que Sintra é guardada por «fadas», pois tal palavra significa «as que destinam» e assim protegem Sintra, por exemplo, contra os arboricidas ou dendroclastas, «homens» para quem as árvores são cilindros de madeira que vão engrossando e que servem para vender. Aquelas são guardiãs das árvores vivas, da paisagem e dos jardins da gloriosa finisterra e aqueles os inimigos destruidores de Sintra. Do lado luminoso temos assim a linha dos heróis-jardineiros de Sintra: D. João de Castro, o rei D. Fernando II, Raul Lino, guardiões dos fados sintrenses. Acerca do «outro lado» apenas um exemplo: pudemos admirar ao longo de anos um grande cedro vermelho situado diante do portão do chalé da Condessa d’Edla, do outro lado da estrada, uma das 10000 árvores plantadas pelo Rei-Artista por volta de 1840. Ao tempo do recente restauro do lindo chalé de tipo norte-americano, sem qualquer fundamento razoável, a «valiosa» árvore desapareceu de um dia para o outro!       

Pode considerar-se Sintra um ponto de partida ou um ponto de chegada?

Sintra é lugar primordial e é a última terra, onde a Serpente morde a cauda.   

Sintra foi classificada em 1995 como Paisagem Cultural. Haverá em Sintra igualmente uma paisagem sobrenatural?

Na medida em que em Sintra se apresentam circunstâncias superiores ao moderno entendimento da «Natureza» (mencionámos há pouco o exemplo dos heróis-jardineiros de Sintra), há uma paisagem sobrenatural. D. João de Castro dedicou ao príncipe D. Luís de Portugal (filho do rei D. Manuel I) o seu Monte das Alvíssaras (na quinta da Penha Verde) como «símbolo das regiões celestes e terrestres». Por outro lado, a aproximação entre a ideia de «sobrenatural» e a de «assombração» parece-nos pueril. 

Entre os que escreveram uma gramática da paisagem humana em Sintra sobressaiu Raul Lino. Que ensinamentos do Mestre se mostram hoje atuais, e que paisagem humanizada foi por ele preconizada?

Na gramática de Raul Lino convergem a Arte e a Natureza mediante um sentido da harmonia, do ritmo e da proporção que só é dado ao homem de uma cuidada, demorada e aprofundada preparação. É este que me parece ser o maior ensino do Mestre. A nossa época é adversa a isto, pois é a época da pressa e, conforme o provérbio, «depressa e bem, não há quem». Permita-me citar um outro provérbio, nómada (tuaregue), que diz mesmo: «Quem tem pressa já está morto». 

Costuma dizer-se que depois de Sartre a pós modernidade colocou os intelectuais numa posição descentrada. O que é ser intelectual hoje? O intelectual é um “escriba obscuro” como escreveu Foucault?

Por essência, o Intelectual é aquele que faz uso da intuição intelectual e deste modo eleva-se acima de toda a parcialidade para ver o grande todo e o lugar das partes no todo. Para além disto, sem a subtil capacidade de ultrapassar a totalidade da existência, não há intelectualidade verdadeira. Destas condições pende o sentido do Homem Universal. Os três eixos que convergem na árvore do Homem Universal são a Verdade, a Beleza e a Bondade. Ora, sem isto, o que se chama erroneamente «intelectual» é, sem dúvida, apenas um «descentrado» («fora do Centro») e, eventualmente, um «escriba obscuro».

“Felizmente, há vários panoramas culturais sintrenses”

Acha que há um panorama cultural sintrense, ou há apenas epifenómenos de franja? Terá a Cultura uma geografia?

Creio que, felizmente, há vários panoramas culturais sintrenses e pessoas capazes de partilhar o que de bom, belo e verdadeiro se ache em tudo isso. Os «epifenómenos» ou «acontecimentos superiores» – «Castro o forte, em quem poder não tem a morte» (como o designou Camões), o «Rei-Jardineiro», o «defensor da Casa Portuguesa» – são sempre as fontes da alta cultura e neste preciso sentido, os desenhadores de uma geografia cultural. É graças a heróis como estes que Sintra é Património e Herança Mundial como Paisagem Cultural. São um exemplo maior para nós. Desconhecer isto é causa dos males que afligem Sintra.

O Rodrigo Sobral Cunha tem abordado com profundidade o tema da ritmanálise, segundo a qual o ritmo é a energia de existência. Que ritmo é o da sociedade atual? Há uma predestinação histórica ou um fluir erróneo? Há relação concetual entre ritmo e dialética?

O Universo e a nossa própria vida têm por base o ritmo. Se a árvore ou os nossos pulmões suspenderem o ritmo respiratório, advém a morte. No pólo oposto da euritmia (o «bom ritmo»), a característica dominante dos homens da nossa época é a arritmia, ou perda de ritmo. Daí a destruição da Natureza e das Cidades, por infeliz exemplo. Só um regresso a ritmos saudáveis nos pode salvar. Trata-se de descobrir o ritmo bom, belo e verdadeiro, capaz de arrancar os homens às pulsões doentias, como as obsessões do dinheiro, do sexo ou da comida. Em contrapartida, valha-nos a lição de Henri David-Thoreau, seguida por Raul Lino, que faz suceder à Ordem dos Cavaleiros a antiquíssima Ordem dos Caminhantes.